Costumes antigos do século XVIII (obra não compilada)

     Entre as inúmeras aguarelas pintadas por Roque Gameiro e destinadas à ilustração, integra-se uma série de imagens cuja temática se inspirava em costumes antigos do século XVIII e de inícios da centúria seguinte. Tratava-se de uma curiosa reconstituição de trajes e de modos de vida desse período, incidindo sobre festividades populares, formas de convívio, ou, mesmo, trabalhos campestres. O objectivo deste trabalho era recriar, pela imagem, vivências de outras eras e fazê-las reviver ou dá-las a conhecer aos seus contemporâneos.
     Para que possamos compreender a razão que levou o grande aguarelista a lançar-se numa pesquisa tão complexa e demorada, convém relembrar o que ficou dito acerca do apego que ele tinha à tradição e aos valores do passado. Durante longos anos entregou-se a esta meritória tarefa que, a ter sido plenamente concretizada, teria tido, na sua época e, mesmo no presente, um valor artístico e etnográfico bem significativo. Infelizmente, se o artista pintou um elevado número de aguarelas, nunca chegou a realizar, plenamente, o sonho de as ver editadas numa obra; e, se se conhece o paradeiro de algumas dessas imagens, muitas outras desapareceram.
     Na altura, o projecto foi largamente divulgado pela imprensa, particularmente pelo Diário de Notícias, pelo Ocidente e pela Vida Artística. O próprio pintor em algumas entrevistas concedidas a jornalistas mencionou a colecção de quadros que executara, colecção que esteve exposta nas Belas-Artes.
     A investigação efectuada que levou Roque Gameiro ao norte do país, onde consultou velhos alfarrábios em arquivos e em bibliotecas, decorreu, aproximadamente, entre 1904 e 1916. O artista chegou, mesmo, a contactar pessoas bastante idosas que guardassem as memórias de um passado, ainda, relativamente recente, a fim de recolher mais alguns dos elementos necessários à prossecução do trabalho que idealizara. Porém, apesar de tão intenso esforço desenvolvido, tal projecto não chegou a concretizar-se e essa notável série de imagens não passou à posteridade compilada num livro.
Maria Lucília Abreu
in Roteiro do Museu de Aguarela Roque Gameiro, 2009

 

     Todos aqueles que se debruçam sobre a vida do pintor apercebem-se do seu profundo nacionalismo, força imanente da sua tão rica personalidade. Esta faceta revela-se em muitos actos da sua existência, desde a fisionomia que deu à casa que mandou construir no alto da Venteira, até à simplicidade que caracterizava a sua indumentária, da qual estavam excluídas materiais de importação.
     É provável que o interesse demonstrado em fazer reconstituir determinadas épocas do passado seja uma marca desse seu entranhado e indefectível amor ao que é genuinamente português. A divisa que adoptou, como norma de vida, "Honra teus avós", lato senso, expressa, concludentemente, essa noção de que se devem respeitar os valores dos antepassados, o que é tradicional e que se torna valioso porque representa uma ancestral revivescência.
     Nas pesquisas que o pintor efectuou com o objectivo de recolher dados fidedignos para muitas das obras de carácter histórico em que colaborou, ele alia a sua profunda erudição ao interesse pela nossa história. Todavia, não se deixou prender exclusivamente ao fascínio que provocam os feitos ilustres que aureolam de glória os heróis, "aqueles que por obras valerosas/se vão da lei da morte libertando".1 Roque Gameiro procedeu igualmente à reconstituição de costumes de cunho genuinamente popular, sem ressaibos de estrangeirismo, num contexto de ricas vivências tradicionais, que marcam, melhor que tudo, a individualidade de uma raça. Daí que ao percorrermos algumas das obras ilustradas por ele, se sentimos que vamos ao encontro do nosso passado, marcado por momentos de glória, somos também sensíveis às imagens que, melhor do que uma pormenorizada descrição, retraíam antigos hábitos da existência colectiva. Tanto como os feitos exaltados pelos historiadores, estes revelam modos de vida que consubstanciaram as realidades do quotidiano das gentes do povo.
     Para essas obras de intenção histórica em que o artista colaborou, se o etnógrafo, o observador de costumes realizou um trabalho rico de poder evocativo, o pintor criou magníficas aguarelas em que se salientam o vigor do traço e um cromatismo simultaneamente vibrante e delicado, de admiráveis gradações tonais.
     Aproximadamente a partir de 1904, começam a surgir vários artigos na imprensa, acerca da expressa intenção do  artista de pintar uma série da aguarelas cuja temática se inspirava em costumes típicos de finais do século XVIII e de inícios da centúria de oitocentos. Tratava-se de uma interessante reconstituição de costumes, trajes e vivências desse período e as imagens que o pintor produziu, com essa finalidade, permitem-nos penetrar num mundo há muito desaparecido. Dada a sua criteriosa responsabilidade de investigador, iniciou minuciosas pesquisas, fazendo consultas em bibliotecas e arquivos. Tratava-se de um projecto ambicioso que lhe exigiu a produção de um número elevado de aguarelas. Actualmente, podemos ter a percepção de como seria a obra completa, através de algumas aguarelas que chegaram até nós, e até de reproduções que surgiram em jornais da época.
     Essa importante recolha foi largamente relatada pela imprensa, e o Diário de Notícias publica um largo artigo intitulado A História pela imagem.
     "Um dos períodos mais curiosos e caracteristicos do viver do nosso paiz é o que abrange o final do século XVIII e principio do século XIX. E o periodo da transição dos costumes antigos para os modernos, do que era acentuadamente nacional, do que possuía um cunho portuguez indelével, sem ressaibos de estrangeirismo, que esbarrava no espirito, na essência rotineira do povo daquelle tempo com as fronteiras inexoravelmente fechadas a quaisquer inovações (...). Fazer reviver o passado, mas de modo que fosse simultaneamente um attractivo e um ensinamento, era uma lacuna imprescindível de preencher (...). Alguém, um artista eminente e radicalmente portuguez metteu hombros á laboriosa tarefa, e dentro em breve nos dará uma collecção cheia de primores, de verdade, de collorido, de graça, de assumptos e de costumes apanhados em flagrante. Esse artista é Roque Gameiro, o delicado e subtilissimo mestre da aguarella, para quem essa especialidade da arte não tem segredos. Segundo o seu plano, largamente discutido no seu espirito e em repetidas conversações com os amigos, a collecção em que está trabalhando intitular-se-ha, provavelmente Portugal Velho. É uma numerosa serie de aguarellas que representam scenas e costumes genuinamente portuguezes, abrangendo quasi todos a primeira metade do século XIX. Em princípios de 1905 tenciona organizar uma exposição de cincoenta dessas aguarellas, isto é, da primeira serie da colossal obra que emprehendeu, pois conta que o seu trabalho não abarcará menos de quatro series, ou sejam quatrocentos estudos. A titulo de curiosidade daremos as designações de alguns que já tivemos ensejo de admirar. São elles: A serração da velha, a queima de Judas, uma procissão, um beijamão da corte, sarau com cantores eunuchos, uma audição de el-rei D. João VI, na rua, a reza do terço, agua vahe. As personagens são collocadas no meio real em que então viviam (...). Nada n'esta importante collecção foi deixado ao acaso, nem se executa dando liberdade à phantasia. O que ali está é da mais escrupulosa autenticidade. Roque Gameiro levou a sua honestidade a abandonar alguns assumptos para os quaes não obteve elementos que lhe inspirassem confiança".2
     "Como em tempos aqui noticiamos, o soberbo aguarellista, colllaborador artístico do Diário de Noticias, dedicou uma boa parte da sua actividade e do seu talento a reconstituir, em trabalhos da sua especialidade, a vida portuguesa da primeira metade do século XIX. E um dos periodos mais pitorescos da existência nacional, pela singularidade dos costumes, pelo esmero da investigação, pela fidelidade como as scenas são reproduzidas. É uma serie onde os trechos da vida de há cem annos para cá são apanhados".3
     "Mostra-nos Roque Gameiro uma série interessante, a dos costumes antigos, que executada com mimo e realce, deriva mais propriamente da sua paciência de investigador do que da sua vibrante sensibilidade de artista. Nos Costumes Antigos propõe-se dar-nos a reconstituição de scenas, typos e trajes desapparecidos, e com elles vem fornecer algumas paginas valiosas para a tão desprezada e necessária historia do traje em Portugal. Esmola para uma promessa, a ida para a missa, o capuchinho francez, esmola para as almas santas, a reza do terço, o maltez, os mariolas, a assadeira de castanhas, a palhoça e o guarda chuva".4
     Uma outra notícia informa os leitores que o artista se deslocara ao norte do país a fim de coligir elementos que lhe permitissem continuar a série de aguarelas que se destinavam a ilustrar os costumes antigos. Efectuou, entretanto, algumas pesquisas na Biblioteca Pública do Porto, durante a estadia que fez nessa cidade.
     "O laureado artista anda em excursão pelo norte do paiz, a fim de colligir o maior numero de informações acerca dos diversos trajes usados em Portugal no principio do século XIX. Trata-se de uma obra artística que Roque Gameiro está executando. Essa obra é uma collecção de costumes nacionais".5
     Em 1905, continua a investigação iniciada no ano anterior e que duraria, aproximadamente, até 1916. Durante esse lapso de tempo recebe em sua casa alguns jornalistas, com os quais fala da sua produção artística.
     Um deles, representante do Correio Nacional, comenta: "E, como é natural, dirigimo-nos em primeiro logar, para o atelier (...). Agora o mais curioso que alli existe é uma grande collecção de pequenas composições que Gameiro está formando com assumptos tirados dos costumes portugueses no final do século XVIII e princípios do XIX: Para leva-la a effeito, este enthusiasta da tradição tem viajado pelo paiz fora, rebuscando velhos alfarrábios, manejado antigos papeis, entrevistado velhos quasi centenários e ido procurar, onde quer que elle se encontre, o mais pequeno indicio que o leve a reconstituir uma scena, a evocar um costume".6
     É justamente no ano de 1916 que mostra alguns dos trabalhos que tinha executado, no âmbito da reconstituição que iniciara em 1904, a um outro jornalista que também o visitara. Durante a conversa que decorreu em sua casa, o pintor refere: "Conhece alguns dos meus quadrinhos de uma colecção da primeira metade do século XIX: Estão nas Belas-Artes. Estes são os restantes. Falta apenas um que vendi".7
     Numa das citações acima transcritas pode ler-se que Roque Gameiro intentava dar o título de Portugal Velho à colecção de aguarelas em que trabalhava há já algum tempo, reproduzindo costumes tradicionais. Decorria, nessa altura, o ano de 1904. Embora esses trabalhos tivessem figurado em algumas exposições, não encontrámos qualquer referência à publicação de uma obra que englobasse essas aguarelas. Só muito mais tarde, em 1931, começa a ser editado, em fascículos, Portugal de algum dia, tendo como subtítulo cenas, usos e costumes de outro tempo. E presumível que, somente nesse ano, o pintor tenha finalmente tido a oportunidade de proceder à edição que projectava há tantos anos. A parte iconográfica era da sua autoria e o texto, de Gonçalo de Matos Sequeira.
     No prefácio diz-se a certa altura: "A novidade é, também, a ressurreição de aspectos perdidos, dilucidados na lembrança ou extintos".8 E no sumário da obra surgem, em certos capítulos, alguns itens temáticos cuja designação é a mesma a que já se aludira numa notícia de jornal, em 1904: "A serração da velha", "A palhoça e o guarda chuva", "Uma audiência na rua".
     Com efeito, ou se trata de uma coincidência de nomenclatura e existem duas obras com uma linha paralela de orientação, a de fazer reviver costumes ancestrais, hipótese que não aparenta possuir probabilidades consistentes, ou então, somente nessa data o pintor reuniu condições para a publicação dessa tão falada colecção.
     Num número de 1911, as revistas Ocidente e Vida Artística publicam algumas reproduções das aguarelas de Roque Gameiro que permitem reviver essas figuras do passado.
     Existe mais uma indicação de que esse trabalho começou a ser publicado a partir de 1933. "Em luxuosíssima edição de Empresa Nacional de Publicidade acaba de ser posto à venda o primeiro tomo da obra Portugal de Algum Dia da autoria de Roque Gameiro e Gustavo de Matos Sequeira. Este primeiro tomo que abrange 16 paginas de texto e 8 de estampas, duas das quais em quadricromia apresenta-se com a mais bela evocação dos saudosissimos tempos da cadeirinha, da liteira, de machos, de sege, da traquitana, do "churrião", e da viagem com escolta, evocação que a arte inigualável de Roque Gameiro e a prosa elegante e erudita de Gustavo de Matos Sequeira souberam animar maravilhosamente.
     O tomo agora posto à venda vem mostrar aos estudiosos o alto valor histórico e artístico de Portugal de Algum Dia, obra que, depois de concluída se poderá reputar de monumental".9
     Infelizmente esta produção nunca foi completada. Ignoramos quais as causas que impediram que um trabalho de tal interesse etnográfico e artístico tivesse ficado sem continuidade.
Maria Lucília Abreu
in Roque Gameiro - O Homen e a Obra, ACD Editores, 2005
1 CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, canto I. 2" estrofe, vs. 5-6.
2 Diário de Notícias, 13 de Julho de 1904.
3 Diário de Notícias, 7 de Junho de 1905.
4 A Capital. A Exposição Roque Gameiro. 12 de Novembro de 1911.
5 O Comércio do Porto, 4 de Outubro de 1904.
6 Correio Nacional. 10 de Fevereiro de 1905.
7 O Mundo, 4 de Janeiro de 1916.
8 SEQUEIRA, Matos e GAMEIRO, Alfredo Roque. Portugal de algum dia. Prefácio. Lisboa. 1931.
9 Diário de Notícias, quarta feira. 27 de Dezembro de 1933.
 
                          Lisboa (Portugal pittoresco e illustrado I), de Alfredo Mesquita

     1904-10-05 - O Comércio do Porto

     1904-10-05 - O Primeiro de Janeiro
     1905-02-10 - Correio Nacional, por Fr. Guy
     1908-04-23 - Diário de Notícias - Exposição no Diário de Notícias,
                           preparando a Exposição Internacional do Rio de Janeiro
     1915-12-21 - Diário de Notícias
     1920-08-        Catálogo Alfredo RG   da Exposição no Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro
                      
 
Algumas obras feitas para "Costumes antigos do século XVIII":
 (Pode clicar nas imagens para aumentar) 
Descarga no Tejo
(O barco da Palha)
Aguarela sobre cartão
14,8 x 22,3 cm
Ver estudo:
Festa de rua
 
Aguarela sobre papel
15 x 23 cm
Festa de rua
(outra versão)
 
 
Aguarela sobre papel
15 x 21,5 cm
O pórtico dos Jerónimos
 
Aguarela
45 x 34,5 cm
Ver:
♦ Exposição de 1908, 1911 e 1920
♦ em
A Noite de 1920-08-23
Poveiros
 
Ver:
♦ Exposição de 1908 e 1911
Ilustração Portuguesa de 1909-06-07
Brasil-Portugal de 1911-11-16
Vida Artística de 1911-11-18, por A. Costa
Occidente de 1911-11-20,
   por Francisco de Noronha e C. A.
Esmola para as almas
 
Ver Vida Artística Ano I nº 36
Na portaria
 
Aguarela
Ver:
Diário de Notícias de 1905-07-07
Vendedora de Laranjas
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1897-10-03
Uma Soubrette
 
Aguarela sobre papel
29 x 16 cm
Ver:
Branco e Negro de 1897-10-31
 
As cigarreiras
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1897-11-14
O fragateiro
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1897-11-21
Varinas
(Trajo moderno)
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1897-11-28
O rapaz vendedor de cebolas
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1897-12-05
Lisboa
A leiteira
 
Aguarela
Ver:
 Branco e Negro de 1897-12-12
Lisboa
O moço de esquina
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1897-12-19
Criada a compras
 
Aguarela
Ver:
 Branco e Negro de 1897-12-26
Os calceteiros
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-01-02
Lisboa  261
Varinas
(Trajo antigo)
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-01-09
Lisboa  082
Um quiosque na mouraria
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-01-16
Lisboa  269
Lavandeira
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-01-23
Lisboa  032
Galegos
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-01-30
Vendedor de agulhas e alfinetes
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-02-06
Lisboa  282
Pedinte vendedeira de cautelas
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-02-13
Lisboa  292
O velho de entrudo
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-02-20
Lisboa  379  308
Rendas, Rendas
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-02-29
Lisboa  133
O carroceiro
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-03-06
Lisboa  037
 
Amolador de facas e tesouras
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-03-13
Lisboa  086
O guarda do passeio
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-03-20
O cosinheiro
 
Aguarela
Ver:
Branco e Negro de 1898-03-27

Outras obras de "Costumes antigos do século XVIII":

 
"No cais do guindais" (Porto)
"Preparativos para a festa da Atalaia"
"O andador das almas"
"Pedindo para a Festa do Espírito Santo"
"Pescador do Seixal"
"O moinho saloio"
"A nora mourisca"
"A mantilha de Coimbra"
"Uma cena de rua"
"A vendedeira de melancias" (Seúbal)
"Mulher do baixo Alentejo"
"A fachada da Conceição Velha"
"Costa da Caparica"
"Trecho da Rua do Bem-Formoso"
"A Torre de Belém"
"Rapazes a tomarem banho"
"Os despejos na Ribeira"
"A queima de Judas"
"Uma procissão"
"Um beijamão da corte"
"Sarau com cantores eunuchos"
"Na rua"

etc.